Refletindo sobre os dons de curar

Refletindo sobre os dons de curar

Qual o melhor entendimento do que o apóstolo Paulo denomina de “dons de curar” em 1 Coríntios 12.8,9?

Os dons de poder, assim classificados para facilitar a didática, certamente são a expressão mais espetacular e visível dos carismas. E, assim como os demais dons, visam à edificação mútua da Igreja ainda que o receptor do milagre seja apenas um indivíduo. Os dons de cura geram, infelizmente, inúmeras dúvidas sobre a dinâmica do seu funcionamento.

É curioso que as palavras “dons” e “curas” estão no plural no original grego. É o único dom mencionado nessa estrutura gramatical. É possível especular bastante sobre isso, mas o plural nos traz a ideia de, obviamente, pluralidade, isto é, algo composto de muitos. Mas será muitos “subdons”? Um dom para cada tipo de doença e necessidade? Ou ainda formas diversas para a manifestação do mesmo dom? Dom para cura do corpo e outra para a cura da mente? Ou tudo isso junto? Difícil saber, pois a Bíblia se cala sobre esse detalhamento. Provavelmente, como afirma Gordon D. Fee, a pluralidade indica que o dom não é permanente, ou seja, algo próprio do portador, mas ele surge segundo cada necessidade específica (FEE, 1987. p. 594).

Gottfried Brakemeier comenta que os dons de poder — cura e fé — são a igreja cumprindo “seu mandato terapêutico mediante oração, imposição de mãos, bênção e solidariedade, mostrando a seu modo que Deus faz maravilhas” (BRAKEMEIER, 2008. p. 161). Certamente que Paulo não é tão evasivo quando Brakemeier. O Novo Testamento mostra claramente que, ao falar de cura, se fala de milagres espetaculares e espantosos e não mero exercício terapêutico e solidário, logo porque há outros dons — misericórdia e exortação (Romanos 12.3-8) — que já cumprem essa missão do conforto. Interpretar o dom de poder como mero exercício de capelania é exegese afetada ideologicamente, pois não era isso que o apóstolo Paulo, o autor primário, tinha em mente.

O lema “Jesus salva, cura, batiza no Espírito e é o Rei que breve vem” mostra que a cura divina é um elemento central da espiritualidade pentecostal. Embora creiamos que a cura divina deve ser buscada e incentivada, cabe lembrar que nem sempre Deus cura. O apóstolo Paulo, por exemplo, foi usado por Deus na cura de um paralítico (Atos 14.8-10), mas diante da doença estomacal de Timóteo, que era um tipo de doença mais simples do que a paralisia, o apóstolo recomendou um pouco de vinho como remédio (1 Timóteo 5.23). O uso do vinho com propósitos medicinais era um conceito amplamente difundido na Antiguidade.

Portanto, os dons de cura não podem ser confundidos com curandeirismo. Mesmo Paulo, a quem Deus usou em várias curas, não foi usado nesse dom quando o seu amigo precisou. Ninguém que em algum momento foi usado por Deus na ministração de cura tem o direito de achar que detém uma espécie de “poder autônomo” que pode ser usado ao seu bel-prazer. O cristão usado nos dons de cura não é um “benzedeiro” ou uma espécie de “feiticeiro” — figuras típicas das religiões animistas. O poder não é do homem e nem pode ser manipulado pelo ser humano, mas é dado pelo Espírito conforme Sua soberania (1 Coríntios 12.11). Ou, como disse Paulo: “A cada um, porém, é dada a manifestação do Espírito, visando ao bem comum” (1 Coríntios 12.7 NVI).

Como notava Thomas R. Hoover, que foi missionário nas Assembleias de Deus do Brasil, alguns dons têm o caráter de permanência (como é o caso do dom de ensino, por exemplo), enquanto outros dons “se manifestam conforme a ocasião e a fé do crente (Romanos 12.6)”. (HOOVER, 1999. p. 107). Assim funcionam os dons de cura. Eles não são provisórios, até porque alguém pode ser usado nele com certa regularidade, mas não podem ser vistos como “propriedade” como se eu pudesse usá-los na hora que quiser.

É, certo, porém, que na Igreja Primitiva a expectativa da cura divina era alta. A igreja ocidental, inclusive algumas igrejas pentecostais, já não vivenciam essa expectativa. Nem sempre essa ausência de cura pode ser colocada no colo da soberania de Deus, mas, sim, na ausência de fé.

Bibliografia

BRAKEMEIER, Gottfried. A Primeira Carta do Apóstolo Paulo à Comunidade de Corinto: um comentário exegético-teológico. 1 ed. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2008.

FEE, Gordon D. The First Epistle to the Corinthians. 1 ed. Grand Rapids: Eedmans, 1987. Obra publicado em português: FEE, Gordon. Comentário Exegético: 1 Coríntios. 1 ed. São Paulo: Edições Vida Nova, 2019.

HOOVER, Thomas R. Comentário Bíblico: 1 e 2 Coríntios. 1 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 1999.

Por Gutierres Fernandes Siqueira.

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