O dilúvio e o épico de Gilgamesh

A Mesopotâmia, que é a combinação das tradições suméria e acádica, nos legou três importantes relatos do Dilúvio (Gênesis Eridu, Gilgamesh e Atrahasis). Em outras palavras, o Dilúvio foi uma tradição bem atestada na Mesopotâmia antiga. Apesar do fato de que o herói do Dilúvio (o equivalente a Noé no texto bíblico) tinha um nome diferente nessas composições (Ziusudra, Utnapishtim e Atrahasis), a história basicamente continua a mesma, ainda que o relato mais completo esteja no épico de Gilgamesh.

O que diz o épico de Gilgamesh

O épico de Gilgamesh é com certeza a mais conhecida das antigas composições mesopotâmicas. Embora não cite nenhum relato da criação, sua história do Dilúvio é aquela com as mais relevantes semelhanças com o relato bíblico do Dilúvio. Mas, Gilgamesh apenas narra o Dilúvio no contexto de um enredo maior que tentaremos resumir neste ensaio.

Gilgamesh é o rei de Uruk e no início do conto ele é bem impopular entre os seus súditos. Como consequência, eles vão se queixar ao deus Anu, o qual responde, criando Enkidu. Este iria, presumivelmente, ser rival de Gilgamesh e distraí-lo para que deixasse de lado seu comportamento opressivo com os cidadãos de Uruk. Ele é um homem primevo que aprecia a companhia dos animais do campo. Todavia, isso não atende aos interesses do povo, de modo que enviam uma prostituta para fora da cidade com o objetivo de “civilizar” Enkidu. À prostituta tem sucesso em seduzir Enkidu, e com relutância consegue levá-lo até Uruk. Uma vez ali, Enkidu se encontra com Gilgamesh, e eles lutam. Em meio à luta, ambos se tornam amigos e embarcam juntos numa série de feitos. Entre outras aventuras, derrotam Huwavwa, o protetor da floresta de cedros do Líbano. 

Durante esse período, a capacidade e a beleza de Gilgamesh atraem a deusa Ishtar, que propõe casar com ele. Gilgamesh atrae a deusa Ishrar, que propõe casar com ele. Gilgamesh a rejeita, o que faz com que ela procure o pai, o deus Anu, em busca de vingança. Anu não deseja matar Gilgamesh, mas, em vez disso, o castiga matando Enkidu. Gilgamesh é bastante tocado pela morte de Enkidu, não apenas porque é seu amigo, mas também, ao que parece, porque a morte de Enkidu o confronta com sua própria mortalidade. É justamente essa indagação que o leva até Utnapishtim, visto que Utnapishtim é o único ser humano a não experimentar a morte. À pergunta de Gilgamesh a Utnapishtim sobre por que ele não morreu é o que leva este último a relatar sua experiência com o Dilúvio (tábua 11 do épico).

Respondendo a Gilgamesh, Utnapishtim narra o tempo em que os deuses decidiram trazer um Dilúvio contra a humanidade. O deus Ea se comunicou com seus devotos e lhe disse para construir uma embarcação que transportaria os moradores da terra em meio à devastação causada pelo Dilúvio. As dimensões dessa arca foram as de um grande cubo. Tendo terminado de construir a arca em apenas sete dias, Utnapishtim carregou a arca com provisões, mas, o mais importante ainda, também levou sua família e animais dentro. Quando todos estavam seguros dentro da embarcação, chuvas terríveis começaram. Até os deuses “ficaram assustados com o Dilúvio”. A tempestade durou sete dias, e a embarcação veio a parar sobre o monte Nimush.

A essa altura, Utnapishtim soltou algumas aves em sequência — duas pombas e, em seguida, uma andorinha — para ver se a terra firme já tinha aparecido. O “truque” deu certo com a última ave, e desembarcaram. Sua primeira providência foi oferecer um sacrifício, o que foi um grande prazer aos deuses, que estavam esfomeados devido à fala de atenção dispensada pelos seres humanos.

Confrontando o mito com o relato bíblico

Nesta altura, você deve estar se perguntado: Qual é a relação e as diferenças entre o Dilúvio e o épico de Gilgamesh? Não podemos negar as semelhanças entre o épico de Gilgamesh e o relato bíblico do Dilúvio. De outro lado, claras diferenças vêm à tona, quando comparamos os relatos.

Tal qual Enlil, Yaweh decide usar uma inundação catastrófica para trazer juízo sobre suas criaturas. No entanto, o que os motiva é uma diferença muito importante. Enlil estava cansado do “barulho” da humanidade, provavelmente como resultado da superpopulação. À motivação bíblica para o Dilúvio foi moral (Gênesis 6.5) e não uma questão de inconveniência causada à divindade. À dimensão moral está ausente na versão mesopotâmica.

Em vários pontos da história, existem diferenças em meio às semelhanças. As duas histórias registram a construção do barco, a duração do dilúvio, a entrada de animais e outros seres humanos, mas os detalhes são diferentes.

Para ilustrar um episódio que é parecido, mas, ao mesmo tempo, extremamente diferente, podemos comparar os dois relatos da oferta de sacrifícios. A semelhança é que, nos dois casos, o “herói” do Dilúvio oferece sacrifícios ao seu Deus ou deuses como o primeiro ato depois de desembarcar. No entanto, a descrição da reação dos deuses no relato mesopotâmico é radicalmente diferente da reação de Deus no relato bíblico. Afinal, os deuses mesopotâmicos dependiam de sacrifício oferecido pelos humanos para se alimentarem.

Talvez, a semelhança mais notável entre os dois relatos seja o emprego de aves para determinar se as águas do Dilúvio haviam ou não baixado. De acordo com o texto bíblico de Gênesis 8.6-12, Noé enviou um corvo e depois uma pomba. No épico de Gilgamesh, a arca veio a pousar sobre o monte Nimush e, depois que passaram seis dias, lemos o seguinte relatório: “Quando chegou o sétimo dia,/ Soltei uma pomba para que se fosse,/A pomba foi e voltou,/Não apareceu nenhum lugar para pousar, então retornou./Soltei uma andorinha para que se fosse,/Não apareceu nenhum lugar para pousar, então retornou./Soltei um corvo para que se fosse,/O corvo partiu, viu o baixar das águas,/Comeu, voou em círculos, não retornou.

É muito improvável que o épico de Gilgamesh tenha feito uso do relato escrito do Dilúvio na Bíblia. À tradição mesopotâmica tem suas raízes na literatura mesopotâmica muito antes do relato escrito do Gênesis. Entretanto, existem mais opções do que simplesmente concluir, como fazem os céticos, que a Bíblia se apossou do material da literatura mesopotâmica. Uma explicação mais plausível é que ambas as tradições remontam a um acontecimento real. O Dilúvio deixou sua marca nas lembranças dos sobreviventes, além do fato de que suas consequências devem ter sido transmitidas o longo de gerações.

Depois do Dilúvio, a humanidade descendeu de Noé e sua família da mesma maneira como a humanidade havia, anteriormente, descendido de Adão. Tal como os descendentes de Adão, os de Noé se dividiram, mais tarde, em duas comunidades, uma que seguia a Deus e outra que o rejeitava. À última adotou sua própria perspectiva religiosa, de Gilgamesh e as outras tradições de Dilúvio do Antigo Oriente Próximo representavam a tradição que se recordava do Dilúvio através da lente de um sistema religioso politeísta, ao passo que o relato de Gênesis é uma forma escrita posterior da interpretação: daqueles que adoravam ao Eterno.

Ao estudarmos o relato bíblico à luz do relato mesopotâmico, o contraste entre as respectivas divindades é gritante. Embora o Eterno se revele como um Deus que julga, Ele não é como as divindades imprevisíveis dos relatos mesopotâmicos. No contexto do juízo (o Dilúvio), nos deparamos com a graça no relato bíblico. Afinal, o Eterno disse que não haveria mais Dilúvio para destruir a Terra (Gênesis 9.11,15). Para nós, que cremos na inspiração plenária das Escrituras, isso faz toda diferença.

Bibliografia

WV.AA. A criação é o dilúvio segundo os textos do Oriente Médio antigo. Coleção Documentos do Mundo da Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1990
Waltke, Bruce K. e Cathi J. Fredricks. Gênesis. Editora Cultura Cristã, 2010
Longam III, Tremper. Como ler Gênesis. Edições Vida Nova, 2009
Kidner, Derek. Gênesis — Introd. e Comentário. Edições Vida Nova

Por, Marcelo Oliveira.

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