O Cristo sob a tinta

“Eu te superei, Salomão”, vangloriou-se Justiniano I ao concluir a construção da Igreja de Santa Sofia em 537. As colunas daquela casa, talhadas todas em raríssimo mármore, emprestavam-lhe uma beleza invejada pelos gregos e que não seria alcançada pelos renascentistas. Exagerava o imperador bizantino? Como do Santo Templo de Jerusalém só nos resta um muro solitário e carregado de lamentos, concedamos-lhe o obséquio da dúvida.

Se a comparação arquitetônica entre ambas as casas faz-se quase impossível, cotejemos-lhes a teologia e a história. Tanto o templo de Salomão como a igreja de Justiniano foram erguidos para enaltecer o nome de Deus. Mas aquele logo transformou-se num covil de ídolos prostitutos e sanguinários. Esta, apesar de ostentar por mais de novecentos anos a cruz do Cristo, não resistiu ao crescente do Islã. Em 1453, sob a espada do otomano Mehmed II, o estandarte de Alá exaltou-se sobre a magnífica cúpula, intimidando uma Constantinopla que já era Istambul.

Ao conquistar a capital de Bizâncio, Mehmed fez da bela e enaltecida basílica uma mesquita que, por muitos séculos, seria o orgulho do Islã. O sul tão conseguiu superar o imperador que, levianamente, dissera haver suplantado o próprio rei Salomão. Mas, em 1935, um homem haveria de sobrepujar tanto a Justiniano quanto a Mehmed.

O pai dos otomanos, como Kemal Ataturk fazia questão de ser lembrado, ansioso por ocidentalizar a Turquia, secularizou a mesquita que já fora igreja. Sua astúcia logrou a esperteza de Justiniano e os rompantes de Mehmed. Agora, nem a cruz, nem o crescente; doravante, museu. Já autorizados a visitar o local, os cristãos não tiveram dificuldades para divisar, naquelas paredes ainda carregadas de reverência, os resquícios de sua história sob demãos de cores já desmaiadas.

Removendo a cal duma parede, com a perícia dum mestre florentino, os restauradores descobriram a imagem do Cristo. As caiações, emudecidas agora, testemunham o desaparecimento de um cristianismo morno e conformado com o mundo.

Muitas igrejas, hoje, em nada diferem da basílica de Santa Sofia. Hábil e astutamente, ocultam o Cordeiro sob a demão de uma teologia que, coroando o homem, destrona a Deus. Sob a camada de uma doutrina enfermiça e viciada, escondem o sacrifício do Unigênito. Da tela da sã doutrina, removem, com a lâmina de um academicismo frio e insensível, tanto a cruz quanto o Crucificado. E com as cores da heresia, desornam o divino para ornar o humano.

No átrio de suas cobiças, esculturam um deus segundo a sua imagem e semelhança. Um deus leniente e permissivo, que não lhes vê o adultério, porque não escreveu o sétimo mandamento; que não lhes censura as rapinagens, porque não cinzelou em pedra a oitava ordenança; que se deleita com suas inverdades, porque não redigiu o nono preceito. Um deus, enfim, que jamais esculpiria as tábuas da Lei nem enlevaria o madeiro que revela as riquezas da graça. Elas burilam admiravelmente seus ídolos, mas já não conseguem moldar o caráter da criança nem talhar o coração do impenitente.

À semelhança de Santa Sofia, tais igrejas fizeram-se museus; algumas, mausoléus. Elas têm história, mas já não fazem história. Até um espaço de memória possuem, porém já não têm a lembrança do primeiro amor. O retrato dos pioneiros ainda se sustenta em suas paredes. Elas, contudo, já não se aventuram pelo Evangelho, cumprindo, além-fronteira, os reclamos da Grande Comissão.

Ontem, movimento; hoje, monumento. Antes, a ação, agora, nem reflexão, mas um ruminar das coisas que eram e que, neste momento, limitam-se a existir. Expostas nesses museus, causam admiração e até espanto. Todavia, são águas que já não movem o moinho. As duas mós, adormecidas e silentes, são vistas e até enaltecidas historicamente, mas teologicamente, desprezadas; já não multiplicam o pão à ordem do Mestre. "

Lembra-se de Éfeso? Que belo museu era essa igreja. Até o mesmo Senhor elogiou-a por aquele magnífico acervo de boas obras, ortodoxia e intolerância para com os maus. No entanto, apesar de uma memória tão espaçosa, a lembrança de seu primeiro amor achava-se em apertos. Em sua exposição de conquistas pretéritas, o primeiro amor nem era mais exibido, porquanto já mumificado. Sim, lá adormecia o amor primeiro no sarcófago que, agasalhado pela mastaba de uma adoração bruxuleante, não mais iluminava o caminho dos que, rangendo os dentes, seguem para a segunda morte.

É chegado o momento de rasparmos as tintas que, pouco a pouco, foram escondendo o Cordeiro. Com a espátula da Palavra, removamos as demãos daquelas cores que dantes pareciam tão vivas, mas que acabaram por esmaecer o carmesim do sangue do Senhor das catedrais de nossas teologias, das basílicas de nosso ativismo e dos mosteiros de nossas místicas esterilidades. À Igreja de Cristo, contudo, dispensa tanto nossas tintas quanto nossos pincéis. Ela é como o pinho-de-riga; prescinde de cores; suas nuanças não haverão de ser superadas.

O pinho-de-riga, natural do Norte da Europa, é uma árvore conífera que, em virtude de suas qualidades, insuperáveis e sempre cobiçadas, é utilizada na fabricação de móveis de luxo e esquadrias. Essa madeira não precisa do concurso das cores para enfeitar um ambiente; basta o recurso de sua presença para conferir beleza até ao feio. Ela requisita apenas os dedos calejados de um hábil artesão que, munido de algumas ferramentas, dá forma à madeira, porém não lhe tira os matizes indígenas.

A Igreja de Cristo tem muito da arte do marceneiro. Mas foi certamente um carpinteiro que fez a cruz de Nosso Senhor. Era tão simples a sua confecção e tão despojada de contornos, que exigia apenas serrote, martelo e, talvez, uma plaina. Nessa arte sem arte, contudo, plenificou-se toda a multiforme sabedoria de Deus. Encimando-a, a inscrição de um crime local que se universalizou no gracioso perdão do mundo que o Pai tanto amou: “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus”. Eis a sagrada sabedoria que Justiniano ignorou e que Mehmed procurou encobrir com as demãos de cal e tinta sobre as paredes da imponente basílica de Constantinopla.

Não teremos nós encoberto o Cristo com as demãos de nossos caprichos? Deixe que a Igreja manifeste toda a sagrada sabedoria do Altíssimo.

Por, Claudionor de Andrade.

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