Guerra cultural sobre os valores cristãos toma os tribunais no Ocidente

Grupos de pressão usam altas cortes para fazer propostas que não passam no parlamento, fazendo crescer preocupação com perfil de juízes

Nos últimos anos, a guerra cultural contra os valores cristãos no Ocidente tem avançado ainda mais, tendo, inclusive, ganhado novas frentes. Se inicialmente ela se dava apenas nas universidades, nos meios de comunicação e nos parlamentos, agora - na verdade, já de um tempo para cá - ela tem tomado os tribunais, que tem sido acionados constantemente por grupos de pressão que tentam impor sua agenda progressista sobre a sociedade. A dificuldade encontrada nos últimos anos em alguns países para fazer passar no parlamento determinadas pautas que não tem apoio da maioria da população tem levado esses grupos de pressão que as defendem (e que são mais organizados) a partirem para os tribunais como alternativa para driblar o legislativo e implementar mais facilmente suas propostas. E uma vez que estamos vivendo uma época em que o sistema judiciário no mundo tem experimentado uma onda de ativismo judicial, com alguns tribunais fazendo praticamente às vezes do legislativo, tal procedimento tem se tornado cada vez mais atrativo e, consequentemente, mais utilizado pelos ativistas progressistas.

A judicialização mundial da guerra cultural

Esse fenômeno da judicialização da guerra cultural tem se espalhado pelo mundo rapidamente. Só para citar casos recentes, em agosto do ano passado, a Corte Suprema da Colômbia, contrariando o que afirma o Código Civil colombiano, liberou o casamento entre adolescentes de 14 anos e adultos; e em setembro do ano passado, a Suprema Corte do México, um país de maioria católica, descriminalizou o aborto. Além disso, nos últimos anos, tribunais superiores em várias partes do mundo, têm feito também avançar a agenda LGBT e outras pautas progressistas.

É importante frisar que esse movimento se dá sobre tudo nas altas cortes nacionais, onde via de regra as indicações são políticas e, consequentemente, ideológicas, e não na justiça comum. Entretanto, as decisões das cortes e superiores acabam afetando as decisões dos juízes das instâncias inferiores. Outro ponto importante que, como para toda ação geralmente há uma reação, grupos evangélicos e católicos têm, em contrapartida, também aprendido a usar as leis e acionar com mais frequência os tribunais em seu favor em caso de decisões governamentais que ferem seus valores. Em alguns desses casos, eles têm obtido importantes vitórias.

Além disso - e por todos esses valores citados acima -, os evangélicos e grupos conservadores em várias partes do planeta tem se preocupado também e cada vez mais com o perfil dos juízes que são escolhidos para as supremas cortes, se manifestando a favor da escolha de magistrados que - independente da fé que professem - sejam menos ativistas e mais textualistas e originalistas (isto é, que sejam em sua interpretação do texto constitucional, fieis ao sentido original do texto quando ele foi adotado, em vez de buscar uma interpretação que não seja aquela intentada originalmente pelo legislador quando elaborou a Carta Magna).

Nos Estados Unidos, por exemplo, tal movimento dos evangélicos, levou o então presidente Donal Trump a escolher em sua gestão três juízes com esse perfil para a Suprema Corte: Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barret - um protestante e dois católicos conservadores que seguem uma visão textualista e originalista na interpretação da lei.

Os ministros evangélicos no STF

Aqui, no Brasil, essa mesma preocupação levou o presidente Jair Bolsonaro a escolher - até como uma forma de também agradar o público evangélico, que compõe boa parte de sua base eleitoral - o pastor presbiteriano André Mendonça como novo Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). O presidente chegou a alardear que o escolhido seria "terrivelmente evangélico". Mesmo a escolha do nome do pastor Mendonça não sendo unanimidade entre os evangélicos, com muitos preferindo outros nomes (devido a declaração polêmica dele que não refletiram bem entre os evangélicos), não se pode negar que a intenção de Bolsonaro ao escolher o pastor Mendonça tenha sido de colocar um juiz no STF com perfil menos ativista e com uma cosmovisão mais cristã.

Uma curiosidade é que o pastor André Mendonça, diferentemente do que foi dito, não é o primeiro evangélico a ser escolhido como ministro do Supremo Tribunal Federal. Ele é, sim, o primeiro pastor a assumir essa função no país. No caso, o primeiro evangélico, a ser ministro do STF foi o diácono batista Antônio Martins Villas Boas. Mineiro, membro da 1ª Primeira Igreja Batista em Belo Horizonte, onde era também professor de Escola Dominical, Villas Boas foi promotor de justiça, delegado, procurador federal, procurador-geral de Minas Gerais, desembargador do Tribunal de Justiça do estado, e em 1957, aos 61 anos, foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal pelo presidente Jucelino Kubitschek. Quem discursou em posse foi Tranquedo Neves. Ele permaneceu no STF até 1966, quando devido a aposentadoria compulsória pela idade, deixou o cargo. Já o pastor André Mendonça, 49 anos, com mestrado e doutorado em Direito pela Universidade de Salamanca, na Espanha, foi advogado, advogado-geral da União e ministro da Justiça e Segurança Pública no governo Bolsonaro.

A lembrança do primeiro evangélico do STF havia sido esquecida por razões óbvias: primeiro, naquela época, a maioria esmagadora das pessoas não se preocupava em conhecer quem eram os ministros do STF, diferentemente do hoje em dia, quando a população brasileira, cada vez mais politizada, conhece mais os ministros do STF do que os nomes dos 11 jogadores titulares da seleção brasileira; e segundo, não havia nos dias do irmão Villas Boas uma preocupação dos cristãos em geral no Brasil com a existência de alguma agenda de valores anticristãos querendo influenciar a Corte máxima do país em suas decisões, razão pela qual, em seus dias, sua chegada ao STF foi mais celebrada entre os da sua denominação. Agora, porém, os evangélicos, em sua esmagadora maioria, deram, pela primeira vez, grande importância à notícia da chegada de um evangélico ao Supremo Tribunal Federal, porque o contexto político e social hoje em nosso país - e no mundo - é outro. Ou seja, os tempos mudaram, criando novas preocupações.

O caso dos Estados Unidos: reação e contra reação

Como sabemos, os Estados Unidos são uma nação fundada por colonos protestantes. Logo, sua Constituição foi elaborada tendo em vista os valores cristãos, como asseveravam muitos dos chamados "Pais Fundadores" dos Estados Unidos, John Adams (1735-1826), por exemplo, afirmou: "Nossa Constituição foi feita apenas para um povo moral e religioso. Ela é totalmente inadequada para o governo de qualquer outro tipo de povo". Thomas Jefferson (1743-1826) declarou que "as liberdades de uma nação" não podem "ser asseguradas quando removemos a convicção de que essas liberdades são dom de Deus" o que é enfatizado na Constituição dos EUA já em sua abertura. Jedidah Morse (1761-1826) afirmou: Uma vez que os pilares do Cristianismo forem derrubados, nossas atuais formas republicanas de governo e todas as bênçãos que fluem delas cairão com eles". E John Quincy Adams (1767-1848) disse que a Declaração da Independência do seu país "foi a primeira a organizar o pacto social sobre o fundamento da missão do Redentor na terra". 

A Constituição dos EUA foi redigida em 1787, mas sua aceitação plena só se deu em 1790, quando ela foi finalmente ratificada pelo último estado, Rhode Island. A demora se deu porque, os estados maiores e mais influentes temiam que o documento desce ao governo federal muito poder e queriam emendar a Constituição para prover e garantir proteções específicas em relação aos direitos das pessoas e dos estados. Então, após dez emendas, o documento pode ser ratificado por todos.  Essas proteções são conhecidas como "Declaração de Direitos" com a Primeira Emenda fornecendo a garantia explícita de liberdade religiosa,  que incluía direitos relacionados as liberdades de imprensa, expressão e reunião. Apesar de os Estados Unidos serem desde o início consideradas uma nação cristã, isso foi afirmado em 1829 na decisão da Suprema Corte dos EUA no caso da "Igreja Santíssima Trindade vs. Estados Unidos" em que as conclusões da Corte incluíram um relato extenso e detalhado da fundação cristã de cada estado, de suas constituições e da Constituição federal dos EUA. A Corte resumiu suas conclusões, declarando: "Nossas leis e instituições devem necessariamente ser baseadas em e incorporar os ensinamentos do Redentor da humanidade. É impossível que seja de outra forma; e nesse sentido e nesta extensão, nossa civilização e nossas instituições são enfaticamente cristãs".

Mesmo o Partido Democrata - hoje o mais liberal dos EUA, sem falar que o Partido Republicano hoje já não é um bastão do conservadorismo cristão - reconheça isso.  Em 1935, o Presidente Franklin Delano Roosevelt disse: "Não podemos ler a história de nossa ascensão e de desenvolvimento como nação sem levar em conta o lugar que a Bíblia ocupou em mudar os avanços da República. (...) aqui fomos os mais verdadeiros e consistentes em obedecer aos seus preceitos, por isso alcançamos a maior medida de contentamento e prosperidade". Porém, uma geração depois e tudo começou a mudar.

No início dos anos de 1960, duas decisões da Suprema Corte sobre a interpretação da cláusula de estabelecimento da primeira emenda removeram a referência e a reverência à Deus nas escolas públicas. As decisões dos julgamentos "Engle vs. Vitale" (1962) e "Murray vs. Curlett" (1963) determinaram que era inconstitucional fazer orações ou leituras e recitar ações da Bíblia nas escolas públicas. Nove anos depois, a Suprema Corte julgou "Roe vs. Wade",  decidindo que o direito da mulher ao aborto prevalecia sobre quaisquer outros direitos concorrentes e não poderia ser abreviado por leis estaduais que proíbem o aborto. Em junho de 2015, no julgamento "Ober gefell vs. Hodges", em uma  estreita decisão por 5 a 4, a Suprema Corte dos EUA legalizou o "casamento" entre pessoas do mesmo sexo em todo país, uma decisão que transformou a definição de família, que havia sido por milênios a instituição fundamental para a procriação e educação infantil. Em seu voto divergente, o juiz John Roberts, então presidente da Suprema Corte, disse que essa decisão "não apenas ignora toda a história e tradição de nosso país, mas as repudia ativamente, preferindo viver apenas nos dias inebriantes do aqui e agora".

Essas decisões da suprema corte gradualmente e coletivamente ajudaram a enfraquecer a autoridade e a influência do cristianismo na sociedade e na cultura norte-americanas. Elas são resultado da perda dessa influência e também razão para um aumento dessa perda.

Tudo isso começou nas escolas. A influência de John Dewy (1859-1952), aclamado como o maior pensador educacional do século 20, não pode ser esquecida. Dewey, cuja influência na educação começa ainda nos anos de 1920,  era ateu e defendia que " não há espaço para leis fixas e naturais ou absolutos morais permanentes". Nas décadas que se seguiram, vários setores do estabelecimento educacional da escola pública procuraram minimizar e apagar os fatos sobre o papel do cristianismo na fundação e formação da nação norte-americana. O resultado desse processo foi constatado já em 1986, quando o Dr. Paul Vitz, professor de Psicologia da Universidade de Nova York, publicou as conclusões de um estudo da comissão da qual participou para examinar o grau e a natureza do prefeito em 60 livros de estudos sociais e de história usados por 87% das escolas públicas dos Estados Unidos. Não só não havia o agradecimento a Deus dado pelos primeiros colonos no primeiro Dia de Ação de Graças como o estudo descobriu que quase todas as outras referências a influência cristã nos EUA primitivos foram sistematicamente removidas.

Mais recentemente, após as últimas escolhas para a suprema Corte dos EUA feitas na região do então presidente Donald Trump, a alta Corte norte-americana passou a ser formada por juízes majoritariamente mais conservadores - mais precisamente, seriam hoje 6 conservadores contra 3 liberais, com apenas um dos conservadores votando às vezes com os liberais (caso do juiz John Roberts, indicado em 2005 pelo presidente George Bush), de maneira a que parlamentares do partido Democrata chegaram a apresentar ano passado um projeto de lei para aumentar o número de membros da Suprema Corte de 9 para 13, para que o liberal presidente  Joe Biden possa escolher novos nomes que tornem o tribunal novamente de maioria liberal. A medida, porém, segundo pesquisas, é desaprovada por dois terços dos cidadãos norte-americanos.

O que mais tem assustado os liberais no país é a possibilidade de a decisão "Roe vs. Wade" - que liberou o aborto em 1973, levando a morte de cerca de 65 milhões de crianças nos últimos 49 anos - ser revisada pela atual formação do tribunal, o que não é impossível de acontecer. O julgamento que pode provocar essa mudança é o do caso "Dobbs vs. Jakson Women's Health Organization", sobre a Lei da Idade Gestacional do Mississipi, promulgada em 2018, que proíbe o aborto a partir da 15ª semana em diante, exceto em caso de risco de vida da mãe e anomalias fetais muito graves. A suprema corte começou a apreciar o caso no final do ano passado e até o fechamento desta edição ainda não havia concluído o julgamento.

"A lei do Mississipi destaca um conflito entre a decisão da Suprema Corte em 'Roe vs. Wade' e a afirmação repetida da Corte de que os estados tem um interesse importante em proteger ' vidas vulneráveis e inocentes' desde o momento da concepção. 'Roe vs. Wade' nacionalizou o aborto, evitando que os estados façam regulamentações de bom senso sobre o aborto indo contra os desejos e valores de seus cidadãos. A Suprema Corte decidir que a lei do Mississipi é constitucional, pode derrubar 'Roe vs. Wade' e liberar estados para aprovar leis que protegem a vida", ressalta a Alliance Defending Freedom, em comunicado de 9 de dezembro passado sobre a importância do julgamento.

Este ano promete ser um ano de muitos embates jurídicos nos EUA e no mundo em torno de questões de interesse dos cristãos como um todo. A conferir.

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