O prólogo do Quarto Evangelho foi escrito em prosa rítmica e, apesar da clareza no tocante à deidade de Jesus, algumas seitas chegam ao ponto de ensinar que Jesus – o lógos – não é Deus, mas, sim, “um deus”. Seria correta tal interpretação? Analisemos a questão como se encontra no texto grego(1) de João1.1c.
É Θεὸς
(theós [Deus]) indefinido em João 1.1c?
Se o substantivo theós , que aparece no original de João
1.1c (“...e o Verbo era Deus”), fosse indefinido, teríamos a tradução “[um]
deus”, como está na Tradução do Novo Mundo.1 Se fosse assim, a implicação
teológica seria que teríamos na Bíblia uma forma de politeísmo, mas não é o caso.
Com relação ao argumento gramatical de que o nominativo predicativo aqui seja
indefinido, este é inconsistente. Aqueles que o defendem baseiam-se apenas no
fato de ser o substantivo theós anarthro, isto é, sem artigo.
De acordo com R. H. Countess,(2) no Novo Testamento “há 282 ocorrências
de Θεὸς anarthro” e em 16
lugares a Tradução do Novo Mundo tem “um deus, deus ou deuses. Em 16 das 282
vezes, seus tradutores foram fiéis a seu princípio, [isto é] somente seis por
cento das vezes”.(3) Conforme Wallace,(4) se a análise de outros termos também
anarthros, no Prólogo Joanino, expandir-se, notar-se-á outras inconsistências. Entretanto,
a Tradução do Novo Mundo traduz Θεὸς
(theós) como “um deus” baseado simplesmente na ausência do artigo (o que, sem
dúvida, é insuficiente). Seguindo este mesmo princípio, teríamos que, no mesmo
versículo, archê significaria “um princípio” (1.1,2); zoê seria “uma vida”
(1.4); parà theoû, “de um deus” (1.6); Ioánnes, “um João” (1.6); theòn, “um
deus” (1.18) etc. Não obstante, nenhum desses anarthros foram traduzidos como
indefinidos. O que resta é suspeitar desta tradução.
A tradução indefinida é gramaticalmente improvável para o
nominativo predicativo pré-verbal anarthro aqui, em João 1.1c, segundo Dixon.(5)
O contexto também sugere essa impossibilidade. Finalmente, conclui Dixon que a
própria teologia do Evangelho de João é contra esse ponto de vista. O que há, na
verdade, é uma Cristologia exaltada no Quarto Evangelho, a ponto de Jesus, o
lógos, ser identificado como Deus (cf. João 8.58; 10.30; 20.28).
É Θεὸς
(theós [Deus]) definido em João 1.1c?
Vários especialistas em gramática asseveram que theós em João
1.1c é definido. Entretanto, sua base normalmente tem sido a má compreensão da
regra de Colwell.(6) Para eles, segundo Wallace,(7) a regra diz: “um NP pré-verbal
anarthro normalmente será definido (e não o inverso)”. Ele, porém, observa que
a mesma regra indica: “Um NP que é provavelmente definido, determinado pelo
contexto e precedente de verbo será normalmente anarthro”.
Wallace comenta ainda: “Se verificássemos a regra para vermos
se ela se aplica aqui, diríamos que a menção prévia de Θεόν (em 1.1b) é
articular. Portanto, se a mesma pessoa a que está se referindo for chamada Θεὸς em 1.1c, então, em ambos os
lugares, ela será definida. Ainda que seja certa e gramaticalmente possível
(apesar de não ser tão provável quanto o qualitativo), a evidência não é muito
convicente”.(8) O referido gramático(9) ainda diz que a maioria dos substantivos
nominativos predicativos pré-verbais anarthros definidos “são monádicos, vêm em
construções genitivas, ou são nomes próprios”. E que nenhuma dessas classificações
se encaixa aqui, diminuindo, assim, a probabilidade de theós ser artro, ou seja,
definido, em João 1.1c. É verdade que o substantivo theón (Deus) em 1.1b
refere-se ao Pai. Logo, dizer que theós em 1.1c é a mesma pessoa de 1.1b é
afirmar que “o Verbo era o Pai”. Essa abordagem, conforme ressaltam os antigos
gramáticos e exegetas, seria sabelianismo.(10)
É Θεὸς
(theós [Deus]) qualitativo em João 1.1c?
João inicia a terceira oração com a conjunção coordenativa καὶ (kαὶ [e, também]) que, segundo Grassmick11 e Lasor,(12)
exerce a função de unir palavras ou orações, deixando claro o relacionamento
entre ambas. Na sequência da oração, ele usa o substantivo Θεὸς (theós), um nominativo
masculino singular, que exerce a função predicativa que, de acordo com Wallace,(13)
frequentemente une-se ao nominativo-sujeito “por um verbo de ligação explícito
ou implícito”. Este verbo de ligação tem o objetivo de descrever “uma categoria
maior”, à qual o nominativo-sujeito pertence. Nesta construção, o verbo ên (era),
imperfeito do indicativo ativo, é um verbo implícito Equativo,(14) o qual se
assemelha aos verbos de ligação em português, mostrando, assim, a relação entre
o predicativo theós e o sujeito da oração, o Lógos. João finaliza a oração com
o artigo definido ho, nominativo masculino singular, que define o sujeito
Lógos, o qual, por sua vez, concorda com o substantivo predicativo em gênero,
número e caso. Sendo assim, de acordo com Wallace,(15) o candidato mais provável
para theós é o qualitativo. E isto é tanto gramaticalmente verdadeiro (pois a
vasta proporção de nominativos predicativos pré-verbais anarthros se enquadra aqui)
quanto teologicamente verdadeiro, pois a teologia do Quarto Evangelho e a do
Novo Testamento o confirma.
Concluindo esta análise, convém dizer que a ideia de um
theós qualitativo aqui é correta, pois a Palavra (ou o Verbo) tinha todas as
qualidades que o termo “Deus” encerra em 1.1b - ou seja, Ele partilhava da
essência divina do Pai, embora fossem pessoas distintas. Sendo assim, deve-se concordar
com a declaração que Wallace(16) faz acerca do Lógos, em seu comentário, sobre
esse assunto, ao esclarecer: “A construção escolhida para expressar essa ideia
foi a maneira mais concisa que João poderia ter usado a fim de declarar ser o
Verbo Deus e ainda alguém distinto do Pai”. Portanto, uma boa tradução para o
texto de João 1.1 é a apresentada por Juan Mateos,(17) que assim reza: “No
princípio já existia a Palavra e a Palavra se dirigia a Deus e a Palavra era
Deus.” (cf. “e o Verbo era Deus” – ARA).
Depois de analisado o texto de João 1.1, e vindicada a
deidade do Lógos, com base em indubitáveis evidências, seria uma aberração acreditar
em três deuses e/ou adorá-los, ao invés de crer em um só Deus que subsiste em
três pessoas distintas (cf. Gênesis 1.1; Deuteronômio 6.4; João 1.1; 20.28; Mateus
28.18,19).(18) Sendo assim, não resta dúvidas de que Jesus Cristo é o Senhor, Deus
bendito e eterno.
Notas bibliográficas
(1) Veja como esse texto foi traduzido na versão Tradução do
Novo Mundo das Escrituras Sagradas. 1986, p. 1326; e consulte CARSON, D. A. Os
perigos da interpretação bíblica: a exegese e suas falácias. São Paulo: Vida
Nova, 2007, p. 76, aonde se diz que “Ao contrário do português, o grego não tem
artigo indefinido”.
(2) Apud WALLACE, Daniel B. Gramática Grega: uma sintaxe exegética
do Novo Testamento. São Paulo: Editora Batista Regular, 2009, p. 267-269.
(3) Idem.
(4)
WALLACE, Ibidem, p. 267.
(5) Apud
WALLACE, op. cit., p. 267.
(6) A regra de Colwell, citada por Wallace, diz que: “os
nomes predicativos definidos que antecedem o verbo geralmente são anarthros...”,
confira em WALLACE, Daniel B. Gramática Grega: uma sintaxe exegética do Novo
Testamento. São Paulo: Editora Batista Regular, 2009, p. 257; porém, Colwell
afirmou ser o inverso de sua regra tão válido quanto a própria regra. Ele
declarou: “a regra sugere, a meu ver, que um NP pré-verbal anarthro deve ser
normalmente definido”. WALLACE, op.cit., p. 259. Para mais detalhes sobre a
questão do artigo e a utilização correta da regra de Collwel, consulte CARSON,
D. A. Os perigos da interpretação bíblica: a exegese e suas falácias. São
Paulo: Vida Nova, 2007, p. 76, 77 e 79.
(7) WALLACE, Daniel B. Gramática Grega: uma sintaxe
exegética do Novo Testamento. São Paulo: Editora Batista Regular, 2009, p. 267,
268; consulte também CARSON, D. A. Os perigos da interpretação Bíblica. a
exegese e suas falácias. São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 80, 81.
(8) WALLACE, op.cit., p. 267, 268.
(9) Idem, p. 268.
(10) WALLACE, op.cit., p. 268.
(11) GRASSMICK, John D. Exegese do Novo Testamento: do texto
ao pulpito. São Paulo: Shedd Publicações, 2009, p. 82.
(12) LASOR, William Sanford. Gramática sintática do grego do
Novo Testamento. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 2002, p. 19.
(13)
WALLACE, Ibidem, p. 40.
(14)
WALLACE, Ibidem, p. 38.
(15)
WALLACE, op. cit., p. 269.
(16) Idem,
p. 269.
(17) MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de São João:
análise linguística e comentário exegético. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2011, p.
31.
(18) Para maior compreensão consulte a Bíblia hebraica
Stuttgartensia. 16. ed. São Paulo:
SBB, 1997, p. 1574; o Hebrew New Testament Copyright. Trinitarian Bible Society.
TBS, 1998, p. 210; e SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL. Novo Testamento interlinear
grego – português. 2. ed. São Paulo: SBB, 2004, p. 340.
por Éder Machado
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