Estamos em meio a uma guerra silenciosa. Não se trata de um embate internacional, civil ou étnico, mas, sim, cultural. Um conflito travado entre os adeptos dos principais sistemas de ideias que movem a sociedade e que apresentam formas diferentes de ver o mundo, compreender a vida e definir o que é certo ou errado, justo ou injusto.
Por muito tempo, essa tensão social foi representada pelo embate
entre o comunismo e o capitalismo, mas, depois da queda do muro de Berlim, tal disputa
perdeu completamente o seu sentido. Como escreveu o ex-professor de Harvard, Samuel
Huntington, em seu livro “O choque das civilizações”, no final da década de 80,
o mundo comunista desmoronou e o sistema internacional da Guerra Fria virou história
passada. Com isso, Huntington previu uma reconfiguração da política mundial
seguindo linhas culturais e civilizacionais. Segundo ele, os conflitos mais abrangentes,
importantes e perigosos, não se dariam entre classes sociais, ricos e pobres, ou
entre outros grupos definidos em termos econômicos, mas, sim, entre povos pertencentes
a diferentes entidades culturais e religiosas. O escritor, então, vislumbrou um
conflito entre as civilizações do mundo ocidental e o mundo islâmico.
Ocorre que Huntington não chegou a prever o choque cultural dentro
do próprio Ocidente, entre os defensores da ética oriunda do modelo judaico-cristão
e os adeptos do liberalismo e do relativismo moral. E é exatamente sobre essa guerra
cultural que estamos falando. Mais especificamente, sobre o choque entre a
cosmovisão cristã e o liberalismo social.
O epicentro do conflito entre os cristãos e os liberais reside
exatamente nas concepções divergentes sobre questões éticas. E esse tipo de
discussão tem uma influência decisiva na vida política, econômica e jurídica do
país. Os debates que envolvem critérios de justiça, distribuição de renda, se o
Estado deve ser mínimo ou de bem estar social, se o aborto, a pena de morte, o
casamento homossexual e a descriminalização das drogas devem ser condutas aceitas,
são temas que, invariavelmente, passam pelo crivo dos fundamentos ético-morais que
norteiam a sociedade.
Hoje, porém, esses fundamentos estão transtornados (Salmos 11.3).
O pensamento liberal defende que as pessoas têm o direito de fazerem o que quiserem
com aquilo que lhes pertence, desde que sejam respeitados os direitos dos
outros de fazer o mesmo. Outro professor de Harvard, Michael J. Sandel, em seu
livro “Justiça”, explica que uma das principais características desse sistema de
pensamento é a rejeição da legislação sobre questões morais. Os libertários são
contra a aprovação de leis que promovam noções de virtude ou para expressar as
convicções morais da história.
Para agravar ainda mais a concepção liberal, o ideal pós-moderno
advoga a inexistência de uma verdade absoluta, capaz de estabelecer regras universais
para todos os homens. Para eles, “o que é certo para nós talvez não o seja para
você” e “o que está errado em nosso contexto talvez seja aceitável ou até mesmo
preferível no seu”.
A partir desse cenário, não é difícil entrever os motivos
para a guerra cultural. Ao contrário da pós-modernidade e do liberalismo, a cosmovisão
cristã é alicerçada em uma verdade absoluta, revelada por Deus por meio das Escrituras
Sagradas. A verdade é o fundamento do pensamento cristão, a viga mestra das
suas doutrinas. E se há uma verdade absoluta, há também um padrão ético universal
a ser seguido por todos os homens (Romanos 2.14-15). Foi baseado neste padrão
ético que o cristianismo influenciou decisivamente a sociedade, sendo
responsável pelos principais fundamentos de justiça, igualdade e liberdade no
Ocidente.
O secularismo, que varre a Europa e os Estados Unidos, tem
contribuído ainda mais para o avanço dessa guerra cultural. Sob o pretexto do laicismo
(separação entre Estado e religião), os defensores da visão bíblica estão sendo
hostilizados por defenderem valores tradicionais históricos. No Brasil, esse conflito
também existe. Durante palestra realizada no Fórum Social Mundial, em Porto
Alegre, em janeiro deste ano (2012), Gilberto Carvalho, atual secretário-geral da
Presidência da República, disse que o Estado deve fazer uma disputa ideológica pela
“nova classe média”, que estaria sob hegemonia de setores conservadores. “Lembro
aqui”, continuou Carvalho, “sem nenhum preconceito, o papel da hegemonia das igrejas
evangélicas, das seitas pentecostais, que são a grande presença para esse público
que está emergindo”. Embora tenha pedido desculpas posteriormente, em razão de várias
manifestações dos evangélicos, o pronunciamento de Gilberto Carvalho descortina
o atual embate cultural dentro da sociedade brasileira.
O crescimento dos evangélicos e a saída da esfera privada para
discutir assuntos de interesse público, como o aborto, a união homossexual e a descriminalização
das drogas, por exemplo, são alguns dos fatores que têm desencadeado o embate.
Isso porque gera uma contrapartida dos liberais, que, incomodados com o avanço
do “conservadorismo”, tentam de todo modo neutralizar os debates sobre questões
éticas, rotulando-os de puramente religiosos.
A tentativa dos liberais de frear a manifestação dos evangélicos
não é um golpe somente contra os religiosos, mas contra a própria Constituição
Federal, que estabelece que todos são iguais perante a lei e que ninguém será privado
de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política.
Um Estado Democrático de Direito pressupõe a possibilidade de debates e discussões
livres pelos vários grupos que compõem a sociedade. Abafar a voz dos
conservadores constitui-se na instauração de um Estado totalitário, que tenta impor
coercitivamente uma ideologia liberal.
O argumento de que em um Estado laico os religiosos não podem
ter espaço no ambiente público é um grande embuste, uma verdadeira deslealdade
intelectual. A discussão do que é justo ou injusto, certo ou errado, são
questões que não dizem respeito apenas à maneira como os indivíduos devem
tratar uns aos outros. Elas também dizem respeito a como a lei deve ser e como
a sociedade deve se organizar. E essa discussão parte do debate sobre a Ética, também
chamada de filosofia moral. E assim como as várias teorias existentes (liberalismo,
utilitarismo, relativismo), o pensamento cristão também tem a sua própria
concepção, e como tal necessita ter lugar à mesa de discussões públicas.
Ao não reconhecer esse direito, o Estado corre o risco de voltar
a praticar a perseguição contra os cristãos do século I, só que, agora, ideológica,
sem derramamento de sangue, mas igualmente perigosa.
por Valmir Nascimento Milomem Santos
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