A formação literária dos Evangelhos tem sua origem no querigma primitivo da Igreja cristã. A estrutura dos Evangelhos pode ser identificada na pregação de Pedro em Atos 10.37-42, e as narrativas da infância de Jesus são descrições posteriores, acrescentadas pelos evangelistas Mateus e Lucas. Os evangelistas Marcos e João não trazem qualquer informação sobre a infância de Jesus. Mateus e Lucas apresentam relatos breves sobre o nascimento e alguns poucos relatos da infância de Jesus (Mateus 1-2; Lucas 2-3). Estão mais preocupados em apresentar a posição jurídica por meio de José (Mateus 1.1-17; Lucas 4.22) e sua posição biológica por meio de Maria (Lucas 3.23-38), para que assim justifiquem a tábua genealógica e seu propósito real e messiânico (Mateus 21.9; João 7.41-42; cp. Gênesis 22.18 com Mateus 1.1). Os relatos que antecedem e sucedem o nascimento de Jesus têm mais proeminência do que a descrição da infância de Jesus, exceto pela menção do menino Jesus entre os doutores (Lucas 2.39-52). Após, ei-lo adulto, como anuncia o querigma em Atos 10.
Apócrifos da infância de Jesus
Pelo fato de o Novo Testamento omitir os relatos da infância
de Jesus, logo surgiram narrativas cristãs e gnósticas que procuravam preencher
essa lacuna, como o Evangelho do Pseudo-Tomé, o Protoevangelho de Tiago e o
Evangelho Árabe da Infância. Todos esses escritos fazem descrições
inverossímeis a respeito da infância de Jesus. O Evangelho do Pseudo-Tomé, por exemplo,
narra que um garoto esbarrou no menino Jesus que, irritado, diz ao rapazinho
que ele não completará o seu caminho e o menino morre imediatamente. Nesses
relatos destituídos de autoridade canônica, Jesus é representado como uma criança
travessa, petulante, que usa sua autoridade e poder de modo inapropriado e até
irresponsável. Já no Evangelho da Infância de Tomé, o menino Jesus é apresentado
com feições mais benignas e emprega seus dons para agradar aos seus pais.
Maria, com Jesus no colo, sente fome e descansa à sombra de uma palmeira.
Jesus, ainda bebê, no colo de Maria, ordena à palmeira: “inclina-te, árvore, e
sacia minha mãe com teu fruto”. Imediatamente, a árvore obedeceu.
Algumas dessas obras, como o Protoevangelho de Tiago - que é
do século 2 -, por serem muito antigas, circularam juntamente com os livros
canônicos do Novo Testamento e, possivelmente, teriam sido lidas por alguns da comunidade
cristã primitiva. Logo, por volta de 360 da Era Comum, o Sínodo de Laodiceia, no
seu artigo 59, proibiu que fossem lidos na igreja os livros não-canônicos. Desse
modo, se estabelece a injunção entre livros canônicos e não canônicos. Mesmo
assim, os livros cristãos não canônicos continuaram circulando às margens do
Cristianismo oficial. Isso porque os apócrifos exerciam um grande fascínio e
aguçavam a curiosidade dos cristãos a respeito da perspectiva alternativa dos
grupos que se opunham ao Cristianismo apostólico.
Essa literatura considerada espúria, de algum modo, alimentava
o imaginário religioso e o Cristianismo popular com narrativas inverossímeis
sobre a infância e palavras de Jesus. O próprio Jerônimo afirmara que quase
nada podia extrair dessa literatura apócrifa, pois se tratava de um grande
delírio. É assim, portanto, que uma lista atribuída ao Papa Gelásio (Decreto Gelasiano)
condena 60 obras apócrifas do Novo Testamento, dentre elas o Evangelho Árabe da
Infância e outras citadas aqui.
Fragmento de papiro mais antigo da infância de Jesus
É nesse contexto que se deve entender a atenção acadêmica ao
papiro redescoberto e decifrado pelos papirologistas Lajos Berkes, da
Universidade de Humboldt, em Berlin, e Gabriel Nocchi Macedo, brasileiro da
Universidade de Liège, na Bélgica.
Esses pesquisadores identificaram que um antigo papiro, quase
ignorado, que pertencia à biblioteca Carl Von Ossietzky, da Universidade de
Hamburgo, na Alemanha, era uma cópia mais antiga do “Evangelho Pseudo-Tomé”, a
partir do reconhecimento do nome Jesus em grego. Esse manuscrito datado do
século 5 narra algumas peripécias da infância de Jesus e tem sido considerado
de grande relevância para a pesquisa da literatura apócrifa e extracanônica da
Bíblia. Isso se deve ao fato de que os especialistas consideram que a versão
atpe então mais antiga do Evangelho Pseudo-Tomé seja um códice do século 11,
cujo texto data aproximadamente do séc. 4 ao 7, enquanto o fragmento encontrado
é do século 5 e, possivelmente, o texto original pode retroagir até o século 2.
O papiro, que mede 11cm x5cm, está em grego, o que pressupõe que o Pseudo-Tomé
tenha sido escrito originalmente nessa língua. A comparação da forma caligráfica
do manuscrito com textos do mesmo período sugeriu a hipótese de que o papiro encontrado
devia fazer parte de um exercício de amanuense que pertenceria a uma escola ou
monastério, pelo fato de a caligrafia não ser profissional, mas desajeitada e escrita
em linhas irregulares.
Das pouquíssimas palavras reconhecidas no papiro, deduziu-se
que se tratava de um episódio ficto da infância de Jesus. O relato que é conhecido
como a “Vivificação dos Pardais”, descreve o menino Jesus, ainda aos cinco anos
de idade, brincando no vau de um rio caudaloso e formando com as mãos doze
pardais de argila. Por se tratar de um dia de sábado, Jesus é repreendido pelo seu
pai, José, e indagado por que faz as esculturas no dia sagrado. Jesus então
bate palmas e as doze figuras de barro criam vida e voam.
Contexto social e imagético
Uma questão importante que os leitores cristãos modernos devem
compreender a respeito de um dos contextos dos quais surgem esses relatos é
que, no período cristão primitivo, o conceito de herói é de alguém que nasce
dotado com as qualidades e o poder para exercer sua função no mundo em vez de
essas qualidades serem desenvolvidas ao longo de sua vida. Assim, os relatos
mirabolantes da meninice de Jesus é uma espécie de justificativa literária dos
milagres e funções que ele exerceu na vida adulta nos Evangelhos. Desse modo, a
imaginação primitiva procurava preencher as lacunas da infância de Jesus por
meio desses relatos apócrifos, a fim de justificar seu poder e ações taumaturgas
na idade adulta. Esse fragmento de papiro é mais uma dessas tentativas ingênuas
e imaginativas para esclarecer a percepção divina que Jesus tinha de si mesmo
desde a infância.
Conclusão
O papiro tem valor histórico, documental e literário, mas pouco
valor teológico. Nenhum desses relatos apócrifos fez parte do cânon. A
artificialidade do estilo, a ingenuidade dos relatos e os contos aberrantes e inverossímeis
foram alguns dos motivos que fizeram com que a igreja descartasse essas obras como
inspiradas pelo Espírito. A ortodoxia, embora crédula, era cuidadosa com os
relatos da infância de Jesus e considerou como canônico apenas o que consta nos
Evangelhos. O fato de não estar no cânon do Novo Testamento significa que os
cristãos primitivos não viam nesses relatos qualquer autenticidade e não os valorizavam
tanto quanto hoje se pensa, apesar de serem lidos e traduzidos noutras línguas.
Agora, a discussão se Jesus operou outros milagres que não são narrados no Novo
Testamento obviamente foi respondida por João em seu Evangelho (21.25).
por Esdras Costa Bentho
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