Desde Sião, um chamamento aos povos

Desde Sião, um chamamento aos povos

Os acontecimentos narrados no Livro de Ruth costumam ser situados cronologicamente como contemporâneos do sacerdote Eli, em sua mocidade. Corrobora com essa datação o historiador Josefo, muito embora alguns problematizem suas afirmativas pela dificuldade de as conciliarem com o fato de Salmon, pai de Boaz, ser o marido de Raabe. De qualquer forma, a questão é entendida melhor se aceitarmos as informações de Josefo e as afirmativas intrabíblicas. Quanto à determinação da data da escrita (para os judeus, levada a termo por Samuel), reconhecemos claramente que foi posterior aos fatos, uma vez que menciona nominalmente o filho e o neto de Obede e determina o objetivo principal da existência do livro, qual seja: delinear a ascendência do rei David.

Há, hoje, uma calorosa discussão a respeito da pessoa de Ruth, quanto a ser ela uma hebreia vivendo em terras moabitas, portanto, uma pessoa de ‘nacionalidade’ moabita, ou de ser uma mulher descendente dos moabitas. O debate não é novo, e tenta conciliar a história com a proibição deuteronômica feita aos moabitas de entrarem na congregação do Senhor. Há uma tentativa de fazer crer que apenas na condição de judia vivendo em terra estranha, Ruth poderia ser aceita na genealogia de Jesus. No entanto, o texto, pelas palavras de Noemi instando para que as jovens viúvas voltassem aos seus parentes e aos seus deuses nos acena para o fato de que eram ambas, Orfa e Ruth, moabitas. A questão anterior, da destruição dos filhos de moabe nos dias de Josué não pode ser usada para determinar a inexistência de algum remanescente na terra. Outro fator que deve ser considerado é declaração de Boaz (2.11 e 12) acerca da respigadora. Os termos usados pelo belemita comparam-se aos da chamada de Abraão, que deixa sua terra, sua parentela e a casa de seus pais. Ruth representa, para o povo judeu, a prosélita fiel, aquela que escolhe fazer parte do povo de Deus. Sendo assim, nada obsta a que ela seja ancestral do Rei David e o filho deste construa um santuário para Deus. Para a Igreja a compreensão dessa possibilidade é marcadamente importante, uma vez que Ruth a representa de forma tipológica, sendo o corpo de Cristo composto por pessoas saídas de terras e de situações espiritualmente diversas, em oposição a Deus, mas que deixam seus ídolos e os laços que as ligavam a eles, optando por se deixarem conduzir ao encontro do resgatador de suas almas (deixo marcado meu estranhamento em que a casa de Israel possa aceitar uma prosélita na ancestralidade de David e que alguns da Igreja rechacem a ideia como impossível). Estrangeiros ou naturais hebreus necessitam de resgate.

Uma necessária pausa pode lançar luzes sobre a questão do resgate. A professora Cláudia Andréa Prata Ferreira, em texto para a ABRALIC “As ressonâncias bíblicas dos livros de Ruth e Ester na reflexão sobre a condição feminina nos dias atuais” observa que: “A lei do resgate estabelecia dois pontos principais: 1) Se alguém, por motivo de empobrecimento, fosse obrigado a vender a sua terra, então o parente mais rico tinha a obrigação de ‘resgatá-la’. Ou seja, ele devia comprá-la não para si mesmo, mas para dá-la ao parente pobre impossibilitado de fazê-lo (Levíticos 25.23-25). 2) Se alguém, por motivo de empobrecimento, via-se obrigado a vender-se a si mesmo como escravo, o parente mais próximo tinha a obrigação de ‘resgatá-lo’. Ou seja, ele devia pagar a soma necessária para que seu irmão recobrasse a liberdade (Levíticos 25.47-49). Esse parente próximo era chamado de ‘resgatador’ (em hebraico, goel). O objetivo da lei do resgate era de defender e fortalecer a família no sentido amplo. A lei também impedia que um pequeno grupo acumulasse propriedades à custa dos mais pobres e impedia que as pessoas pobres viessem a perder a sua liberdade, tornando-se escravos de pessoas com maiores recursos”. A autora destaca a diferença entre a lei do resgate e a lei do levirato: “A lei do levirato (Deuteronômio 25.5-10) estabelecia que se um homem casado morresse sem ter filhos, um de seus irmãos devia casar-se com a viúva, e o primogênito de tal união seria legalmente considerado como filho do falecido. O objetivo é o de perpetuar a descendência masculina, ‘o nome’, garantindo assim a continuidade da família e impedindo que o patrimônio passasse para as mãos de outros. Ver também a história de Tamar (Gênesis 38.1-26)”. No caso específi co de Noemi e de Ruth, uniam-se as duas necessidades e, portanto, o ‘goel’ também precisaria exercer o papel de ‘levir’.

O resgatador foi procurado, aceitou efetuar o resgate, mas não consentiu em cumprir o levirato, conhecendo que todo o patrimônio resgatado seria devido à descendência do falecido. Pastor Jaime Soares [líder da Assembleia de Deus Bonsucesso no Rio de Janeiro – RJ], em inspirado sermão proferido no dia 6 de agosto de 2006, lembra que a priorização do bem material afastou o homem da bênção espiritual. “Fulano teve a chance de sair da história sem ser ‘fulano’. Não foi marido de Ruth, não foi pai de Obede, não foi ancestral de David, não entrou na genealogia de Jesus. Ele não aceitou que a bênção tem um preço; o preço da bênção é dar a outra face, é perdoar o perseguidor, é abrir mão da vingança, é andar outra milha, é esperar, é estar calado, é lutar com o anjo no vau de Jaboque, é arrancar a pedra do poço e dar de beber. A mulher que pediu vasilhas emprestadas pagou o preço de ter um bom relacionamento com os vizinhos. Fulano, porque não quis gastar, entrou na história ‘fulano’ e saiu da história ‘fulano’. Porém, o que nem fulano nem Boaz sabiam era que Jesus estava escolhendo sua própria família”. Que maravilha perceber a mão de Deus movendo a História!

Independentemente da data dos acontecimentos e do registro da narrativa, o texto nos desloca do ambiente dos macroacontecimentos, envolvendo juízes, povos inimigos a Israel, conquistas, corrupções, legislações, boas ou más escolhas humanas, especialmente de líderes, e nos leva de volta ao ambiente diário, à colheita e à ceifa, às perdas e aos ganhos, às decisões diárias, ao amassar do grão para a feitura do pão, aos atos de gentileza, ao testemunho diário, ao casamento, aos filhos etc., pois persiste em existir, distante das grandes ocorrências e da grande mídia, um mundo comum, simples, e uma vida corriqueira. São coisas reais que não pararam e não param, nem por questões políticas ou higienistas. A vida prossegue, as estações se sucedem e continua sendo necessário semear e colher. Alguns viverão tais dias apenas contemplando aquilo que acontece em escalões que não podem alcançar e que não se deixam mudar (a não ser pelo poder da oração, pois há Um que pode agir), outros confiarão e farão abençoadas suas vidas, reconhecendo a mão do Criador no fruto da colheita e no fruto do ventre. A vida prossegue, com a bênção de Deus.

Algo mais ainda acontece: aquele Boaz é referido no capítulo 2, primeiro versículo, como um parente do marido de Noemi, e o termo parente, aqui traduzido, é o hebraico ‘moda’, que significa um conhecido, não no sentido do conhecimento profundo, da penetração, no hebraico ‘yadha’. Boaz é um mero conhecido, como alguém de quem se ouviu falar. No versículo 3 do mesmo capítulo, ele passa a ser ‘da família de Elimeleque’. Agora, Boaz é ‘mispachah’, alguém que é membro de uma comunidade familiar, alguém com quem se compartilha uma história e uma herança de sangue e de tradição. Mais adiante, ainda, no versículo 20, Noemi refere-se a ele como ‘karov’ – chegado, ou seja, Boaz não é mais apenas um parente, mas é um parente chegado. Ao fi nal do mesmo versículo, a mulher já o cita como um possível ‘goel’, ou seja, o resgatador. E Boaz provará que é o resgatador, pagando o preço.

A vida não apenas prossegue na sucessão nos dias, mas pode ser a via que permite o aprofundamento da relação que o homem estabelece com Deus. Alguns, com o passar do tempo e com a experiência das dores e dos trabalhos, permanecerão referindo-se a Jesus como alguém que lhes é conhecido, outros estarão nos bancos das igrejas fazendo parte de uma família social, mas sem um aprofundamento dos laços espirituais. Outros desejarão achegar-se ao Senhor. Bem-aventurados aqueles que O reconhecerem como o Resgatador de suas vidas, aquele que excelentemente nos avaliou e nos chamou a Si, mesmo sendo nós, outrora, estrangeiros, distantes e infiéis, escravos por nossos pecados, necessitados de amoroso resgate. Glórias a Deus, fomos resgatados! Bendito Remidor, sob cujas asas viemos nos abrigar.

Notas sobre o ato de respigar, segundo a professora Cláudia Andréa, em artigo supracitado:

“Shichechá: Quem esqueceu as espigas ou feixes de espigas no campo durante a colheita, não pode voltar para pegá-los e sim deixar para os pobres. A mesma lei é válida para os pomares e vinhedos. Peá: O dono da terra ao colher no seu campo não deve ceifá-lo todo, e sim deixar um pouco de colheita nas extremidades para os necessitados. A peá também deve ser deixada nos pomares e vinhedos. Peret e Olelot: Peret é uma uva ou duas que se desprendem de um cacho na hora da colheita. Olelot são cachos pequenos, cujas uvas são separadas. Deve-se deixar tanto o peret quanto os olelot no vinhedo, sem colhê-los, para que sejam colhidos pelos pobres (Ver Levíticos 19.9-10; Deuteronômio 24.19-21. 2 Cf. Josué 22.19; Salmos 85.2; Oséias 9.3; Jeremias 16.18; Ezequiel 35.5). O que chama justamente a atenção sobre o texto é a personagem reunir três elementos fundamentais sobre as questões sociais e uma tríplice categoria protegida por Deus: ela é uma mulher e uma mulher estrangeira, pobre e viúva. Rute acaba tornando-se uma espécie de memória que liga a libertação do cativeiro egípcio a uma legislação de cunho social para proteger os pobres e excluídos (Deuteronômio). Na terra de Israel, as espigas ou os feixes de espigas, os frutos, as uvas e as azeitonas deixados nos campos após a colheita eram destinados ao órfão, à viúva e ao estrangeiro, que assim tinham algo para poder comer (Levíticos 19.9-10 e Deuteronômio 24.19). O proprietário não tinha o direito de raspar suas terras a ponto de nada deixar para os necessitados”.

Por Sara Alice Cavalcanti.

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