Os cristãos primitivos e a guarda da Lei

Os cristãos primitivos e a guarda da Lei

Mesmo não exigindo aos crentes gentios guardarem a Lei de Moisés, por que os cristãos judeus a guardavam?

A Lei, no contexto judaico, pode ser compreendida sob três perspectivas, as quais são: cerimonial, civil e moral. O tema Lei está intrinsecamente tecido no texto veterotestamentário e é facilmente assimilada no ambiente da Bíblia Hebraica. Por outro lado, a legislação judaica não fica circunscrita ao Primeiro Testamento; antes, sim, ela perpassa para o Segundo Testamento, e consigo traz a complexidade de compreensão de sua vigência no ambiente neotestamentário.

Principio a análise da Lei no ambiente do Novo Testamento recordando que o conteúdo dos Evangelhos encontra-se cronologicamente inserido em um período de vigência da Lei Judaica. É nesse cenário que surge Jesus, o Messias, enfatizando que não viera abolir a lei (Lucas 16.17), mas, sim, reinterpretá-la (Marcos 3.4) e fazê-la se cumprir (Mateus 5.17-19; 23.2,3a,23). É à luz do como Jesus relacionava-se com a Lei que devemos compreender a relação dos primeiros cristãos com a Lei Mosaica, lembrando que o discipular é compreendido como “buscar ser e viver como o seu Mestre”, e é assim que eles procuravam viver.

A primeira comunidade cristã, não obstante suas origens Galileias (Marcos 14.28), se organiza em Jerusalém (Atos 1.12-15; 2.1-13). Essa comunidade hierosolimita não visava se constituir em uma nova religião, antes, sim, apresentava-se como uma nova compreensão da fé judaica, de que a Era Messiânica havia chegado. Ela se compreendia como uma nova congregação, a “Ekklesia” (Salmos 74.2 c/c Atos 20.28), e se autodenominava como “o caminho” (Atos 19.9,23; 22.4; 24.24,22). E era sob essa perspectiva de um “segmento do judaísmo” que os judeus viam a comunidade cristã primitiva (Atos 9.2; 24.5; 28.22), assim como também o Império Romano via os litígios entre cristãos e judeus como sendo de fórum interno (Atos 18.14,15).

A comunidade hierosolimita e, em menor escala, a cristã-judaica helênica mantém-se ligadas às práticas religiosas judaicas, haja vista que cumpriam a lei (Atos 10.14; 16.3; 21.20; 21.23-26), permaneciam participando das atividades no Templo (Atos 2.46; 5.12,42) e frequentando a Sinagoga (Atos 9.2,20; 13.5). Todavia, cabe ressaltar que frequentavam o Templo para ensinar e orar (Atos 3.1), e não mais para oferecer culto sacrificial, uma vez que compreendiam o sacrifício expiatório de Cristo como perfeito e absoluto (Hebreus 10.19,20), e, assim viviam a suficiência soteriológica do sacrifício de Cristo, evidenciando a ineficácia da Lei para o perdão (Atos 13.38; 22.16). O sacrifício no Templo fora substituído, na comunidade primitiva, pela celebração da Ceia comunitária (Atos 2.42,46). Assim como o próprio conceito de Templo passa por uma releitura conceitual (1 Pedro 2.5-9).

A comunidade cristã, embora de origem judaica, gradativamente distancia-se dos demais segmentos religiosos judaicos pelas seguintes razões:

1) Sua teologia messiânica é cristológica. O núcleo do pensamento dessa comunidade é a morte e a ressurreição de Cristo. Assim, os cristãos resignificam os elementos religiosos herdados do judaísmo, tais como a troca do sábado pelo domingo como dia de descanso e adoração (Atos 20.7; 1 Coríntios 16.2; Apocalipse 1.10, e Didaquê 14). Os primeiros conflitos entre os cristãos e as autoridades do Templo (Mateus 22.23-33; Atos 23.6-9) se deu devido ao ensino cristológico dos apóstolos (Atos 4.1,2; 5.17) e os seus respectivos resultados (Atos 6.7). E isso desencadeia-se em uma inevitável ruptura (Atos 6.13,14; 7.47-50).

2) A conversão dos gentios. Parte da comunidade de Jerusalém entende que só se deve aceitar como um novo membro aquele que se submeter à prática da circuncisão e à observância da Lei. Também se vê em Antioquia que gentios e judeus cristãos não deveriam partilhar a comunhão da mesa. Esse conflito resulta em um concílio apostolar em Jerusalém visando delinear uma solução (Atos 15.13), no qual ficou definido ser desnecessária a observância da Lei por parte dos gentios, salvo exceções (Atos 15.20,29; 21.25), a “lei dos estrangeiros residentes” (Levítico 17.10; 18.26; 20.2). E essas abstenções, doravante, eram feitas não segundo a Lei, mas em nome do Espírito e dos Apóstolos (Atos 15.28). Após o Concílio de Jerusalém, a comunidade cristã entende que as prescrições da lei não têm mais caráter normativo, menos ainda salvífico, e, assim, ela não retrocede a uma vida religiosa subjugada à Lei Mosaica, mas passa a entende-la tão somente como instrução moral.

Por, Jesiel Paulino.

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