O retorno dos Anussim para casa

Foram vizinhos, na Rua do Sodré, cidade de Salvador, Bahia, o poeta Castro Alves e o judeu português Isaac Amzalak, homem de vastos recursos e de atuação indiscutível nos eventos relativos ao cerco sofrido pela cidade durante a Sabinada, além de marcante presença entre os nobres da época, sempre defendendo os interesses dos desprotegidos e as ânsias da Lei. Fazia parte do grupo de judeus expulsos de Portugal que se instalou no Marrocos e, no século XIX, retornou às terras lusas, preferindo, no entanto, o refúgio das colônias. A presença da família Amzalak na Bahia encontra vários registros, sendo apenas um dos muitos relatos daqueles que fizeram do Brasil a sua nova pátria. Isaac e Hannah instalaram-se numa casa avarandada que fazia frente à do poeta abolicionista. Os olhos deste, logo puderam admirar a beleza das filhas Simy e Esther, que o Senhor concedeu ao casal. Da contemplação, surgiram os versos do poema Hebréia, datado de 1866, nos quais o anseio e a saudade de um povo distante de seu lar são retratados com maestria: “Tu és, ó filha de Israel formosa.../Tu és, ó linda, sedutora Hebréia.../Pálida rosa da infeliz Judéia/Sem ter o orvalho, que do céu deriva!/Por que descoras, quando a tarde esquiva/Mira-se triste sobre o azul das vagas?/ Serão saudades das infindas plagas,/Onde a oliveira no Jordão se inclina?/Sonhas acaso, quando o sol declina,/A terra santa do Oriente imenso?/E as caravanas no deserto extenso?/ E os pegureiros da palmeira à sombra?!...”

A distância do lar ancestral certamente acentuou-se, para os dispersos de Sião, no terrível ano de 1496, quando os filhos de Israel foram expulsos de Portugal, onde viviam já por mais de mil anos. Alguns, como os Amzalak, encontraram refúgio no norte do continente africano e mantiveram preservados seus costumes e fé. Outros, os que permaneceram pelos mais variados motivos, viram-se forçados a batizarem-se cristãos e adotarem, ainda que superficialmente, os hábitos religiosos impostos pelas autoridades do país. Os ‘batizados em pé’ adotavam o patronímico de seus padrinhos ou latinizaram seus sobrenomes hebreus ou, ainda, adotavam para seus sobrenomes as denominações de plantas, animais, lugares ... Os forçados, agora cristãos-novos, povoaram as colônias, num esforço de preservação da vida e numa tentativa desesperada de um reinício distante da perseguição que sofreram. Sua presença verificou-se marcante na construção da identidade nacional, conforme assevera José Gonçalves Salvador, em sua pesquisa intitulada “Cristãos-Novos no Povoamento e Conquista do Solo Brasileiro – 1530-1580”, onde registra: “...no decorrer desses primeiros séculos, cristãos-novos e judaizantes carrearam para o Brasil boa porção da sua cultura, através de hábitos, crenças, atividades e letras. Eles refulgiam entre os raríssimos católicos alfabetizados. Nas funções públicas detinham comumente os cargos de escrivães, tabeliães, contadores, provedores e os postos oficiais militares. Por isso, também as tradições mosaicas persistiram, embora enfraquecidas pelo sincretismo religioso, fruto, outrossim, das circunstâncias na Península e em nosso país.”

As circunstâncias citadas advinham da Inquisição espanhola, iniciada em 1481, que atingiu os judeus da Península Ibérica com uma intensidade somente superada pelo sadismo de Hitler. Buscando encontrar a veracidade das conversões dentre os cristãos-novos, usou os recursos do fogo, da água, do garrote, da roda, dos açoites, das barras de ferro, do estrangulamento e do esquartejamento. Conforme descreve John Hagee, em seu livro “Em defesa de Israel”, publicado pela CPAD, “as torturas da Inquisição continuaram do final do século XV até o século XVIII. Durante este período, 323.362 pessoas foram queimadas vivas, e 17.659 foram queimadas em efígie. Foi um dos períodos mais terríveis da história da Espanha”. Somando a extensão das agruras, dos encarceramentos e das mortes sofridas em Portugal, Espanha e suas colônias, alcança-se a marca de centenas de milhares. Dos que sobreviveram e passaram a viver sob a capa de um cristianismo de apresentação social, falam os mais pessimistas em serem hoje 10 milhões somente no Brasil, sem contar a Argentina, o Caribe, e uma grande diversidade de lugares de refúgio. A Doutora Anita Nowinsky, da USP, especialista no assunto, fala em 20 milhões de Anussim.

Os Anussim (forçados) compõem um grande povo do qual muitos estão procurando refazer a memória do percurso de seus pais, buscando sua identidade e a explicação da saudade ancestral pelas terras bíblicas. Professando as mais variadas correntes de fé, cultivando hábitos que somente agora começam a compreender, eles refletem a cifra estimada na colonização do Brasil, quando a porcentagem de judeus ou de cristãos-novos que aqui aportava excedia os 50%.

(Continua)

Por, Sara Alice Cavalcante.

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