Chegar à fenda que corta as terras de Israel no sentido norte-sul e por onde correm as águas do rio Jordão é alcançar a mais baixa depressão da Terra. O curso de águas que faz desse lugar seu leito nasce alimentado pelas fontes altas do Hermom, reunidas no lago Hulé. Nesse ponto, estamos a setenta metros acima do nível do mar. Daí por diante, inicia-se a descida, nem sempre navegável, daquele que, por atingir no seu momento final, ou seja, no limiar do Mar Morto, cerca de 394 metros abaixo do nível do mar, recebeu seu nome – Yarden, ou seja, o descedor. Do seu início, depois do ajunta-mento no Hulé, até o deságue no Mar de Sal, terá percorrido cerca de 121 km, sempre descendo, reafirmando no trajeto o nome que lhe foi conferido.
A região superior, termo da tribo de Dã, serviu de rota para
a Síria, conferindo grandes oportunidades comerciais aos seus habitantes.
Também abrigou cultos idólatras, mas foi nesse ambiente, nas proximidades de
Cesareia de Filipe, que Jesus perguntou aos Seus discípulos: “mas vós, quem
dizeis que eu sou?”. Se a alguns a beleza daquelas terras serviu de espaço à
idolatria, para Pedro foi o lugar da confissão: “Tu és o Cristo” (Mc 8.29). A visão
do monte Hermon coberto de neve em suas alturas inspirou cânticos de louvor a
Deus e renovou a certeza da manutenção da perenidade do maior curso de águas da
Terra Santa; além disso, a umidade consequente, propagada em direção ao Sul, geraria
uma promessa de orvalho apenas comparada pelo salmista à união dos filhos de
Deus.
Importa descer. Somente descendo chegamos ao Quinerete, com
sua forma de harpa, lugar das cidades de Coazim, Betsaida e Cafarnaum, de vida
fervilhante, de pesca farta, de sinagogas, de comércio, de criação, de plantio e
de intensa vida social judaica nos dias de Jesus, sempre sob a vigilância das
tropas romanas. Ali Jesus pregou, ensinou, curou, libertou pessoas possessas, acalmou
o mar e operou muitos outros milagres. A vegetação e a geografia do entorno do
Mar da Galileia serviram de material didático às parábolas do Senhor, e nesse
ambiente cheio de vida a mensagem da vida eterna foi anunciada. O pão da vida
foi oferecido, de forma ainda mais abundante do que os pães e peixes ali
multiplicados.
Mas, ainda importa descer. Um pouco abaixo, no mesmo Jordão,
Naamã mergulhou sete vezes e foi curado. Região de fontes de águas termais, o
entorno do Jordão a partir do Quinerete sofre variações que vão de charcos de
águas a regiões mais altas, apropriadas para retiros e orações.
Descendo, o Jordão atravessa um terraço superior, um segundo
terraço, mais baixo, e chega a uma região de planície. Intercalam-se áreas de
plantio com regiões de relevo difícil, quase uma fronteira entre as terras ao
Oriente e ao Ocidente do rio. O Yarmuk, o Jaboque e mais nove outras correntes
alimentam e fortalecem o volume das águas, tornando o lugar propício às
plantações e, no passado, à floresta local. Vista de longe, a área era
comparada ao “jardim do Senhor” (Gn 13.10). Nessas margens, Jacó lutou e teve
seu nome e vida mudados pelo Senhor. Nas proximidades, Elias ocultou-se de
Acabe e foi ali que ele “subiu aos céus num redemoinho” (2Rs 2.7-11). Os israelitas
atravessaram o rio para adentrar a Terra da Promessa. Davi atravessou o rio
fugindo de Absalão. Tornou a fazer o percurso para reassumir o trono, após a
derrota de seus inimigos.
Persistindo em descer, quando nos aproximamos do Mar Morto, lugar
em que finda a jornada desse tão importante rio, chegamos a uma região mais
ressequida. O rio, nesse lugar, por vezes não passa de um filete. Outras vezes
ganha fôlego, conforme o derretimento das neves o alimenta. Vistas de longe,
suas águas parecem escuras, mas, ao nos aproximarmos, testemunhamos sua clareza
e constatamos que elas são um pouco salobras, o que invalida o local para
cerimônias de purificação judaicas. Talvez por isso João Batista o tenha
escolhido para anunciar a vinda do Messias e levar pecadores ao arrependimento.
O batismo de João não era um cerimonial judaico. Era algo novo. Ali, onde o
barro produz naturalmente formações semelhantes a pães, onde o deserto esconde
cavernas para abrigar pregadores itinerantes e onde a visão dos montes à
distância faz parecer que os picos das alturas do mundo são oferecidos ao observador,
João batizou Jesus. Ali proclamou-o como Cordeiro de Deus. No dia seguinte, reafirmou,
ao vê-lo passar: “Eis o Cordeiro de Deus”. A Trindade manifestou-se ali, nas
águas desse Jordão já baixo, já quase a findar-se em seu chamado de águas a
serviço de seu Criador. O nome do lugar? Betábara.
Descer até Betábara, palavra aportuguesada para a expressão “casa
do vau”, foi a escolha do Mestre nos meses finais de Seu ministério. Era
dezembro, tempo da Festa de Dedicação, quando retornou ao lugar do início da missão.
No mês de abril seria morto, durante a Páscoa judaica. Por algum motivo,
preferiu Betábara a Cafarnaum ou a Betânia. Por sinal, alguns confundem os dois
locais. Traduções inclusive chamam o local do batismo de Jesus de Betânia, o
que reforça a confusão; outros chamam Betábara de Betânia da Pereia. Também não
devemos atribuir a Yardenit (pequeno Jordão) o lugar de batismo. Yardenit é o lugar
preferido pelos turistas, mas não foi o lugar do ministério de João, muito mais
ao sul. Quanto a Betânia, de fato, antes da morte em Jerusalém, Jesus passou
por lá – era mister ressuscitar Lázaro. Numa cidade chamada Efraim deteve-se
por um pouco de tempo. Não importa. Ressaltamos o fato de que o Senhor voltou
ao lugar de Seus começos quatro meses antes de empreender o desafio final de
Sua jornada.
Descer até o passado, rever o início antes de prosseguir,
tornar a ouvir a declaração de Seu chamado antes do cumprimento final da
profecia, fazer a voz de João novamente ressoar e reverberar até o mais
profundo da alma – “Eis o Cordeiro de Deus” – não corresponderia à necessidade de
uma lembrança falha, mas, certamente, aos grandes desafios não são supérfluas
as lembranças relativas ao chamado pessoal, à nossa história, ao dia em que fomos
confirmados diante de todos. Trazendo à mente aquilo que nos dá esperança,
aquilo que nos fortalece, reafirmando o propósito da própria existência, subimos
mais resolutamente a Jerusalém.
Travessias, vitórias contra os inimigos, milagres, sujeição de
demônios, experiências com o sobrenatural, fugas ou retornos, dias de vergonha
ou dias de glórias, nada disso é suficiente se perdermos a razão de nossa existência.
Somente descendo retornamos à vocação primeira. Nesse navegar, concluímos que não
serão as vitórias ou derrotas que farão a diferença na vida da nação de Israel.
A grande e verdadeira mudança ocorrerá no retorno ao seu chamado primeiro, à
sua vocação sacerdotal. De nada adianta derrotar inimigos e retornar ao pecado.
De nada adianta o mover sobrenatural seguido do afastamento, da incredulidade e
da afronta a Deus. Israel atravessará, mais uma vez, eu creio. Mas precisa
atravessar mudado. Mancando, talvez, mas retomando o chamado para ser Príncipe
de Deus.
Não há outra maneira. O rio ensina – há que descer. Israel precisa
retornar ao Senhor, lembrar dAquele que o chamou e que o confirmou com
testemunho dos céus. O Rei desceu. Israel precisa descer. Precisamos. Desçamos.
por Sara Alice Cavalcanti
Compartilhe este artigo. Obrigado.
Postar um comentário
Seu comentário é muito importante