Contagem para a colheita da alegria em Israel

Contagem para a colheita da alegria em Israel

Que motivos teriam levado dezenas de milhares de judeus ultra ortodoxos a deixarem suas casas e comparecerem ao primeiro grande evento organizado em Israel após o relaxamento das medidas restritivas visando conter a propagação da Covid-19? Qual a razão para que estivessem presentes no Monte Meron, em número excessivamente maior do que os 10 mil permitidos pelas autoridades israelenses na madrugada de sexta-feira, dia 30 de abril (2021)? Qual o significado de Lag BaOmer e quais as razões de sua atratabilidade? O nome da festividade que ganhou as mídias nos últimos dias, após o tumulto e debandada que vitimaram 44 Judeus por asfixia ou pisoteamento e deixaram outros 150 feridos, havendo entre eles várias crianças, requer alguns esclarecimentos.

Após a saída do Egito, nos dias de Moisés, o povo foi ensinado a celebrar anualmente sua libertação, através das festividades de Pessach e a contar os dias que antecederiam as celebrações de Shavuot (semanas), exatamente sete semanas no total, encerrando-se a contagem no dia que chamamos de Pentecostes (50), quando Israel relembra a entrega da Torah no monte Sinai. O período é marcadamente agrícola, e o termo ‘ômer’ pode ser traduzido por ‘feixe’, referindo-se aos feixes de cereais colhidos na ocasião. A contagem do ômer inicia-se, portanto, com os primeiros feixes de cevada e finda-se com a conclusão da safra do trigo – é a colheita da primavera.

Histórica e tradicionalmente, o período foi marcado por alguns acontecimentos trágicos: no segundo século da Era Cristã, uma terrível praga levou à morte vários alunos do Rabino Akiva; no trigésimo terceiro dia da contagem do ômer deu-se a morte do Rabino Shimon barYo-chai, principal aluno de Akiva e responsável pela revelação cabalística do Zohar (radiância ou esplendor), conjunto de livros que são parte fundamental da mística judaica - segundo se conta, o religioso, cujo corpo foi enterrado no Monte Meron, teria pedido aos seus alunos que transformassem sua morte numa ocasião festiva – esses, então, em homenagem à luz da Torah, passaram a acender fogueiras nesse dia especial; o período foi marcado por outro grave acontecimento quando, em 1096, teve início na Alemanha a Cruzada Popular ou Cruzada dos Mendigos, movimento que antecedeu a primeira Cruzada e que devastou a comunidade judaica do Vale do Reno (Alemanha), levando à morte cerca de 12 mil judeus, num acontecimento que é referido como Guezerot Tatnav (desgraças do ano judaico de Tatnav, ou seja, 4856).

Quer pelo respeito à solicitação feita pelo Rabino Yochai, quer pela necessidade de intercalar as manifestações de tristeza com um pouco de alegria, Lag BaOmer é marcado por celebrações. As crianças desfilam, fogueiras são acesas (com direito a assar marshmallows e castanhas), são feitas brincadeiras com arcos e flechas, jovens reservam a data para casarem-se e as crianças de três anos fazem seu primeiro corte de cabelo. Há grande júbilo nesse trigésimo (letra ‘lâmed’, que corresponde ao nosso ‘l’) terceiro (letra ‘guímel’, que corresponde ao nosso ‘g’) dia, daí o nome ‘Lg’, que lemos ‘Lag’. Literalmente, Lag BaOmer significa ‘o trigésimo terceiro dia do ômer’.

Embora nada justifique o desrespeito à limitação estabelecida pelas autoridades israelenses para a reunião no Monte Meron, compreende-se um pouco os motivos que reuniram tantos judeus e as expectativas alegres que tinham para a ocasião. Parece que a tradição, agora, acrescentará mais um triste dado, com aquela que está sendo considerada uma das maiores tragédias civis do Estado de Israel. A festa mudou-se, rapidamente, em luto. As acusações transitam entre os organizadores do evento e o governo, por não ter impedido a violação das normas com mais severidade.

Há ocasiões, porém, em que as emoções percorrem o caminho inverso, qual seja, da tristeza à alegria e esperança. Foi o que aconteceu no nascimento de Benjamin, filho de Jacó e Raquel. Quando a amada do patriarca agonizava após o dificultoso parto em que deu à luz seu segundo filho, esforço enfatizado na Torah pela repetição do termo ‘trabalho’, chamou, em seu suspiro final, a criança recém-nascida de ‘filho da minha dor’ ou Benoni. A palavra era a expressão do sofrimento materno, o fim de uma existência repleta de esperas e de frustrações, a experiência de uma alegria pela qual tanto se esforçou, mas da qual não poderia desfrutar. O relato de Raquel está reproduzido em muitas narrativas familiares e comunitárias em que vidas são rotuladas pela experiência da dor que causaram, sem jamais terem a oportunidade de mudarem sua história de vida – são sempre o filho drogado, inda que recuperado, a jovem perdida, inda que santificada, o marido ou a esposa infiéis, mesmo após o arrependimento, o desonesto, o bêbado, o parente preguiçoso, o membro da igreja com o qual não se pode contar, mesmo após a transformação pela qual já passaram, para a glória de Deus. Estão rotulados, marcados, engessados num momento passado de erro, de dor ou de falta. Para reverter o fatídico decreto, há que se elevar a voz profética de alguém que conserve uma ‘paternidade para com as almas’, num pastoreio amoroso que declara: “Não, não será para sempre o filho da dor, mas chamar-se-á ‘BenYamin’, Benjamin, o filho da destra”.

Na destra há força e habilidade. Curiosamente, houve um grande número de sinistros (canhotos) na tribo de Benjamin, o que fez deles excelentes arqueiros, dada a frustração de seus inimigos, surpreendidos pelo curso das flechas desferidas pelos benjamitas. Raquel não podia, em sua dor, imaginar que dava à luz uma descendência tão estratégica. Também não poderia, salvo por revelação, compreender que sinalizava, tipologicamente, o nascimento de uma geração final, um corpo de guerreiros agraciados com habilidade e força, preparados como aqueles que são os caçulas na casa de Israel. Para um tempo que requer um agir estratégico, nada mais conveniente que um povo que saiba agir com sabedoria e destreza, sem chorar os confortos que lhe são negados, saindo da ‘normalidade’, para lançar-se com coragem aos desafios para os quais foi chamado.

De fato, apenas um homem é digno de receber e revestir-se inteiramente do significado do termo Benoni. Somente um carregou com as nossas dores, sendo descrito como ‘homem de dores, que sabe o que é padecer’. Jesus é Benoni, o filho da dor. Mas o Filho de Israel é igualmente o filho da destra, segundo o testemunho de Estêvão, o Mártir, que O viu a direita do Pai, pronto a receber a primícia dos mártires da fé em Seu Nome. Paulo, na carta aos efésios, reforça o poder que elevou Jesus e o fez assentar-se como verdadeiro Filho da Destra. Raquel, fixada na dor, era, ainda assim, agraciada pela tipologia de seu nome, raquel = ovelha, dando à luz um tipo do cordeiro. O Cordeiro, ele sim, é legitimamente o Filho da Dor, e também o Filho da Destra, seu duplo trabalho, sendo o servo sofredor ao mesmo tempo em que é o rei triunfante, pois morreu, ressuscitou, está vivo e reina. O sofrimento pelo qual passou apenas realça o brilho da glória que possui. Essa glória está repleta de alegria – a alegria do Cordeiro diante do fruto de seu penoso trabalho. Essa glória foi profetizada por Israel, nas cercanias de Belém, Efrata, nos futuros termos da tribo de Judá.

Nossa solidariedade para com os enlutados em Israel; num mesmo espírito e compaixão, aguardamos e anunciamos as consolações do nosso Deus. Queremos consolar Sião, não com o anúncio de uma alegria passageira, mas com a certeza daquela perene e eficaz; não com a luz da mística, mas com o prenúncio da glória. Rejeitamos o rótulo de povo sofredor e antecipamos o júbilo da nação chamada a abençoar todas as nações da Terra. A voz profética de Israel haverá de prosseguir, acumulando feixes para a colheita final. A destra do Altíssimo os cubra com habilidade e força, e enxugue de seus olhos toda a lágrima.

Por Sara Alice Cavalcanti.

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